Padre Vânis: Mãos sujas com as tintas nas serragens

Tapete de Corpus Christi
Tapete de Corpus Christi

Naquela manhã acordei bem cedo e quando estava à mesa para o café percebi que minhas mãos de adolescente ainda estavam manchadas. Eu tentei limpá-las bem antes, entretanto a tinta que usará durante aqueles primeiros dias da semana para tingir as serragens permanecia entre minhas unhas. Confesso que não me importei, pois sabia que mais sujas iriam ficar após a tão grande tarefa que se descortinava com o nascer daquela quinta-feira do “Corpo de Cristo”.

Após encher alguns sacos com as finas serragens tingidas com variadas cores subi com os vizinhos para o destino: uma das esquinas da Avenida Brasil da pequena Guapé-MG.

Outras tantas pessoas naquela manha fria iam, viam com pressa e decisão, tendo nas mãos enfeites cortados de papelão decorados com papel brilhante dourado e prata. Elas sabiam assim como eu que não poderia haver delongas, nem muitas prosas, pois certamente nosso padre não iria esperar o termino da tarefa para passar com a procissão.

Quando cheguei à esquina um longo círculo de cal estava estampado no chão da rua e o número do nosso setor 34 gravado e nítido marcava que o nosso lugar de enfeitar era aquele.

Então iniciamos jogando as serragens ora de cor vermelha, verde, amarela e azul no chão. Nunca quis ser mestre em alguma coisa, mas não posso negar que não aguentava ficar quieto sem palpitar ou criticar. Vendo que um risco estava fora do lugar pus-me a reclamar o que me custou uma repreensão por parte da Tia Imidia, coordenadora de nosso setor eclesial. Ao mesmo tempo tudo acabou em risadas, claro que ela cedia e isso era normal para o povo do “nosso setor” ouvir nossas “rusgas” em questões de religião.

Cada um foi fazendo alguma parte daquele circulo que foi coroado com uma frase escrita com pó de café umedecido: “Isto é o meu Corpo”. Ansioso cheio de curiosidade percorri cada quarteirão daquelas ruas observando e comparando cada detalhe com o enfeite que havíamos feito. Após tantos calores e apreensão em pouco tempo tínhamos de voltar em casa para nos preparar para a missa na Igreja Matriz de São Francisco.

Quando a missa terminou uma procissão em fila se formou e no final debaixo de um pano dourado (Pálio) caminhava o padre carregando o ostensório com o Corpo de Cristo. Passou por cima dos enfeites preparados pela manha e algumas crianças logo atrás sorrateiras pegavam o que restavam dos enfeites numa disputa interminável. Eu particularmente nunca levei para casa alguma sobra destes enfeites, preferia andar ali bem perto do Padre olhando as muitas pétalas de rosas que eram jogadas pelas meninas de branco como homenagem para Nosso Senhor. Gostava de ouvir os cantos dentre os quais me chamavam a atenção o “eu quisera” e “quando Jesus passar”.

Jesus então passou pelas ruas deixando suas pegadas impressas naqueles enfeites destruídos. Com certeza para Ele não houve distinção de mais bonito ou menos requintado, visto que cada um foi feito com uma boa parcela de amor e isso para Seu Coração basta. Não existiu alegria maior vislumbrar um pouco a frente o enfeite preparado pelo nosso setor 34 e nosso padre trazendo Jesus em suas mãos.

Tanta beleza, todo o nosso esforço Jesus guardou para si, afinal também era esta a nossa missão ao preparar o Seu caminho. Parei um pouco e olhei para o chão vendo que as belas formas das flores e a frase já não existiam. Ao mesmo tempo olhei para minhas mãos e unhas e vi que ainda estavam sujas da tinta usadas para tingir aquelas serragens. Apressei meus passos novamente me coloquei próximo ao padre me sentindo muito feliz.

Desculpem-me usar de uma história minha neste texto por sinal longo. Talvez seja por simplicidade ou vaidade de minha parte, porém para alguém algum bem há de fazê-lo.

Desejo a todos um feliz Corpus Christi.

Com todo afeto de meu coração,

Pe. Vânis Vieira da Cunha
Pároco de Campos Gerais – MG

2 COMMENTS

  1. Belo texto! Me vi nele com a idade de 10 anos. Me lembrei também das mandalas feitas pelos monges tibetanos que após terminadas são destruídas. “O Caminho” é mais importante que as obras.

  2. Padre Vanis suas palavras nos leva a cada dia mais para perto de Jesus.Que Deus abençoe sempre o senhor. Sua benção. ?

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